Expiação
[geral]
A palavra “expiação” ocorre apenas uma vez no Novo Testamento em Hebreus 2:17: “para expiar os pecados do povo”. A palavra aqui é ἱλάσκομαι – hilaskomai “propiciação”. Embora a palavra expiação não seja encontrada no Novo Testamento, expiação em seu verdadeiro significado é falada continuamente, como “resgate”; “levando Ele mesmo em Seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1 Pe 2:24); “Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós” 1 Co 5:7); “Cristo... fazendo-Se maldição por nós” (Gl 3:13); “Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos” (1 Pe 3:18); e, para usar a linguagem da fé, “pelas Suas pisaduras, fomos sarados” (Is 53;5); “o Qual por nossos pecados foi entregue” (Rm 4:25); “Ele Se manifestou para tirar os nossos pecados” (1 Jo 3:5).
No Velho Testamento, encontramos constantemente a palavra “expiação”, mas não temos, de forma alguma, a palavra “propiciação”; mas a mesma palavra, kaphar, embora geralmente traduzida como “fazer expiação”, é empregada para “purgar” e, ocasionalmente, para “limpar”, “reconciliar”, “purificar”. A palavra kaphar é literalmente “cobrir”, com várias preposições junto a ela; a mais comum é “por” ou “sobre”. Dai vem “expiar por ele” ou “por seu pecado”: a pessoa ou seu pecado é coberto: a expiação era feita sobre as pontas do altar: a força é “expiação por”. A expiação não era feita sobre o altar de incenso, mas por ele; assim como pelo lugar santo, e para ou com respeito a Arão e sua casa: a preposição usada é al.
A mesma é usado com os dois bodes. Os pecados eram vistos sobre o bode sem pecado, e a expiação era feita em relação a esses pecados. O como isso acontecia não nos é dito aqui, mas é pelos dois bodes fazendo na realidade, dos dois, apenas um, porque o objetivo era mostrar que os pecados foram realmente colocados sobre ele (isto é, sobre Cristo), e os pecados carregados para longe da vista, e para nunca serem encontrados. Se pudermos direcionar nossas ideias, como ensinadas por Deus quanto à verdade, na linha do pensamento judaico, não haverá dificuldade com a preposição al. A dificuldade surge do fato de que a preposição “por” apresenta a pessoa envolvida à mente; o “sobre” é meramente o lugar onde era feita, como, por exemplo, em um altar; enquanto a preposição hebraica al se refere à limpeza pelo kaphar daquilo que estava sobre a coisa al (pelo) qual o rito expiatório era realizado. Obviamente, o bode não era a pessoa envolvida, nem era simplesmente feito sobre o bode como o lugar do ato. O bode era aquilo sobre o que estavam colocados os pecados, e eles deveriam ser purificados e eliminados. A expiação se referia a eles como assim colocados sobre o bode. Como já foi dito, o como não é declarado aqui, mas o fato importantíssimo definido de que todos foram levados de Israel e de diante de Deus. O necessário sangue ou vida era apresentado a Deus no outro bode, o que realmente afastava esses pecados; mas fazia muito mais, e esse aspecto está ligado a eles ali. Este duplo aspecto da obra expiatória é da mais profunda importância e interesse, a apresentação do sangue a Deus no propiciatório e o carregar dos pecados. A palavra kaphar – fazer expiação – ocorre em (Êx 29-30, 32; Lv 1, 4-10, 12, 14-17, 19, 23; Nm 5-6, 8, 15-16, 25, 28-29, 31; 2 Sm 21:3; 1 Cr 6:49; 2 Cr 29:24; Ne 10:33).
Uma breve indicação de algumas outras palavras hebraicas pode ajudar. Temos nasa, “levantar”, e assim perdoar, remover os pecados da mente da pessoa ofendida, ou mostrar favor em levantar o semblante da pessoa favorecida (Sl 4:6). Temos também kasah, “cobrir”, como no Salmo 32:1, onde o pecado é “coberto”: às vezes usado com a preposição al, como em Provérbios 10:12, “o amor cobre todas as transgressões”, perdoa: eles estão fora da vista e da mente. A pessoa é vista com amor, e não suas faltas com ofensa.
Mas em tais palavras não há ideia de expiação, o lado do ofensor é contemplado, e ele é visto em graça, seja qual for a causa: pode ser necessária expiação, ou simplesmente, como em Provérbios, bondade graciosa. Também temos salach, “perdão”. Portanto, é usado como o efeito de kaphar, como em Levítico 4:20. Mas kaphar sempre tem uma ideia distinta e importante ligada a ela. Ela vê o pecado como contra Deus, e é resgate, quando não é usada literalmente em relação a somas de dinheiro; e kapporethé é o propiciatório. E embora envolva perdão, purificação do pecado, sempre tem Deus em vista, não apenas que o pecador é aliviado ou perdoado: há expiação e propiciação nela. E isso está envolvido na ideia de purificar o pecado, ou fazer a purificação do pecado; ele está aos olhos de Deus como aquilo pelo qual Ele é ofendido e aquilo que Ele rejeita e julga.
Havia um piaculum, “um sacrifício expiatório”, algo satisfatório para o indivíduo envolvido em culpa, ou algo que era ofensivo a Deus, algo que Ele não podia tolerar por causa de Sua própria natureza. Com os pagãos, que atribuíam paixões humanas ou vingança demoníaca a seus deuses, isso foi obviamente pervertido para atender a essas ideias equivocadas. Eles pleiteavam contra a vingança de um ser provavelmente irado e vingativo. Mas Deus tem uma natureza que é ofendida pelo pecado. É Santo e, claro, não é afetado por paixão; mas a majestade da santidade deve ser preservada. O pecado não pode ser tratado com indiferença, e o amor de Deus fornece o resgate. É o Cordeiro de Deus Quem empreende e conclui a obra. O amor perfeito de Deus e Sua justiça, a ordem moral do universo e de nossa alma por meio da fé, são mantidos pela obra da cruz. Por meio do perfeito amor não só de Deus, o Doador, mas d’Aquele, que pelo Espírito eterno Se ofereceu a Si mesmo imaculado a Deus, é feita a propiciação – a expiação pelo pecado; seu aspecto sendo para com Deus, enquanto o efeito se aplica a nós na limpeza e justificação, embora vá muito além.
A expiação é mais a própria satisfação que é feita, o piaculum113, aquilo que tira a ira, e que é devotado, feito maldição, e assim é substituto para o ofensor, para que ele fique livre. E aqui o substantivo kopher vem para esclarecer a questão. É traduzido como “resgate, satisfação” e em 1 Samuel 12:3, um “presente [suborno – ARA]”. Assim, em Êxodo 21:30, um kopher (traduzido como “resgate [satisfação – JND]”) é imposto sobre um homem para salvar sua vida quando seu boi matou seu vizinho; mas em Números 35:31 nenhum kopher deveria ser trazido pela vida de um homicida; pois (Nm 35:33) a terra não pode ser limpa, kaphar, mas apenas pelo sangue do homem que derramou sangue como um homicida. Isso mostra claramente qual a força do kopher e do kaphar. É oferecida uma satisfação adequada aos olhos e à mente daquele que está descontente e que julga; e por meio disso há purgação da ofensa, purificação, perdão e favor, de acordo com aquele que toma conhecimento do mal.
Uma palavra pode ser adicionada quanto à comparação feita entre as duas aves limpas (Lv 14:4-7) e os dois bodes (Lv 16:7-10). O objetivo das aves era a limpeza do leproso; era aplicação ao homem contaminado, não o kopher, resgate, apresentado a Deus. Não poderia ter sido feito a não ser com base no derramamento de sangue e na satisfação, mas a ação imediata foi a purificação: portanto, havia tanto água quanto sangue. Uma ave era morta sobre as águas correntes em um vaso de barro, e a ave viva e outros objetos eram mergulhados no vaso, e o homem era então espargido, e a ave viva solta longe da morte, embora uma vez identificada com ela, e estava livre. O Espírito, no poder da Palavra, torna a morte de Cristo disponível no poder de Sua ressurreição. Não havia pecados colocados sobre a ave solta, assim como no bode solto: eles eram identificados com o que havia morrido e então são soltos. A água viva no vaso de barro é, sem dúvida, o poder do Espírito e da Palavra na natureza humana, caracterizando a forma da verdade, embora a morte e o sangue devam aparecer, e toda a natureza, sua pompa e vaidade, devam submergir neles. O leproso é purificado e então pode adorar. Esta não é propriamente a expiação para com Deus, embora fundamentada nela, como marcada pela morte da ave. Isso é a purificação do homem na morte para a carne, mas no poder da ressurreição conhecida em Cristo que uma vez morreu para o pecado.
O mesmo ocorre com a bezerra ruiva (Nm 19:1-22), não era em si mesmo um ato de expiação, mas de purificação. O fundamento foi colocado ali na morte e queima da bezerra. O pecado foi, por assim dizer, consumido nela, e o sangue foi aspergido sete vezes diante do tabernáculo da congregação. Quando Cristo morreu, o pecado foi, como ele foi, totalmente consumido em favor de Seu povo pelo fogo do juízo, e todo o valor do sangue estava diante de Deus, onde Ele Se comunicava com o povo. Tudo isso estava resolvido, mas o homem havia se contaminado em sua jornada pelo deserto e precisava ser purificado. O testemunho de que o pecado havia sido tirado há muito tempo por Cristo ter sofrido o que era o fruto do pecado, foi trazido pelo poder vivo do Espírito Santo e da Palavra, e assim o homem era purificado. Mas o ato de purificar não é em si mesmo a expiação; pois na expiação, a oferta é apresentada a Deus. É um kopher, um resgate, uma satisfação, para atender a perfeição infinita e absoluta da natureza e caráter de Deus, perfeição essa que apenas ali é verdadeiramente revelada. Assim, a expiação é feita e o próprio Dia da Expiação é chamado kippurim. O sacerdote fazia expiação em relação aos pecados; e isso tinha o duplo aspecto de apresentar o sangue diante de Deus, como atendendo o que Ele era, e suportando os pecados de Seu povo e levando-os embora para nunca mais serem encontrados. Devemos fazer a diferença entre um véu não rasgado e sacrifícios repetidos, e um véu rasgado e um sacrifício oferecido uma vez por todas. Isso é ensinado na epístola aos Hebreus.
Ainda há um caso a ser notado, mas era meramente um princípio confirmando o caráter real do kaphar, fazendo expiação. Em Êxodo 30:11-16 foi ordenado que quando o povo fosse contado, cada um, rico ou pobre, deveria dar meio siclo como kopher, resgate, por sua alma ou vida. Isso não tinha nada a ver com pecado, mas com resgate, para que não houvesse praga – um reconhecimento de que todos igualmente pertenciam a Deus, e não podiam ter qualquer orgulho humano em seu número, como Davi depois trouxe a praga sobre Israel. Isso foi oferecido a Deus como um sinal, e mostra qual é a força de kaphar, fazendo expiação.
Não temos expiação em relação à oferta de manjares: nela temos a perfeição da Pessoa de Cristo, e todos os elementos que a constituem como Homem, e ali provados pelo fogo de Deus, o qual foi até a morte, e morte de cruz, em tudo um perfeito cheiro suave, e perfeito em apresentá-Lo a Deus, mas não kopher, resgate: para isso devemos ter derramamento de sangue.
A essência da expiação é, em primeiro lugar, uma obra ou uma satisfação apresentada a Deus de acordo com, e perfeitamente glorificando a Sua natureza e caráter com relação ao pecado pelo sacrifício; e em segundo lugar, levando nossos pecados; glorificando a Deus exatamente onde o pecado estava e em relação ao pecado (e, portanto, Seu amor está livre para ir a todos os pecadores); e dando ao crente, aquele que vem a Deus por aquele derramamento de sangue, a certeza de que seus pecados se foram, e que Deus não Se lembrará deles jamais.
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N. do T.: Piaculum é um rito sacrificial pelo qual a comunhão é restabelecida entre um deus e o adorador: uma oferta expiatória. (cf. Merriam-Webster).